O filósofo argentino Enrique Dussel visitou a Reitoria da UFBA na tarde desta quinta-feira (24/09), onde ministrou a conferência “Representação e Participação da Filosofia da Libertação” para uma plateia formada principalmente por estudantes e professores das áreas de filosofia, direito e ciências sociais.
Antes da palestra, Dussel foi recebido pelo reitor João Carlos Salles, que recebeu de presente o livro “Política da Libertação: história mundial e crítica” e aproveitou para convidar o filósofo argentino a participar do próximo encontro da Sociedade Interamericana de Filosofia, atualmente presidida pelo reitor.
Radicado no México, Dussel é conhecido como um dos maiores expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano. Autor de inúmeras obras, seu trabalho discorre sobre temas como filosofia, política, ética e teologia. É crítico do pensamento eurocêntrico contemporâneo e da pós-modernidade, chamando por um novo momento denominado “transmodernidade”.
Antes da conferência, ele conversou com o UFBA em Pauta, e discorreu sobre alguns temas da atualidade, no marco de sua Filosofia da Libertação. Leia os principais trechos da conversa:
Qual o papel de universidades tidas como "periféricas" no panorama mundial da produção de conhecimento, no sentido de reverter a atual dinâmica centro-periferia no que o senhor chama de "sistema mundo"?
Na América Latina latinohispânica, temos universidades desde 1550, mais de 40 centros universitários que davam titulos de licenciado em Lima, México, Santo Domingo, até em nível de doutorado. A universidade é o pulmão científico dos saberes de um povo, que deve ter memória deles, transmiti-los às novas gerações e produzir novo conhecimento. O mau das nossas universidades é que, como colônias que somos, em grande parte reproduzem o saber produzido na Europa e nos Estados Unidos. O problema da universidade é que é colonial - e por isso temos que fazer uma descolonização epistemológica. E justamente nas universidades é que temos que deixar de ser colônias para ser centros criadores de conhecimento. Mas isso supõe todo um marco teórico sobre o povo, vontade de fazê-lo e poder para fazê-lo. A Filosofia da Libertação latinoamericana, que eu pratico, nasce dessa proposta, de criar pensamento próprio, porque simplesmente tenta pensar a realidade que é distinta [da europeia e norte-americana]. Os claustros universitários são muito coloniais e repetitivos do central. Então, essa é a crise atual e a situação em que nos encontramos. Que a universidade comece a ser criadora do saber e a ser realmente a autoconsciência de seu próprio povo, e que defenda a cultura própria ante a avalanche de uma cultura que nos vem de fora pelos meios de comunicação, pelo cinema… e que nos faz parecer que não temos cultura, e que temos que aprender as leis para poder começar a pensar. É lutar contra a corrente.
Na Bahia, historicamente, a maioria da população - negra e pobre - sempre tendeu a ser não apenas invizibilizada, como a ser tratada como "minoria". Em suas visitas a Salvador, o senhor enxerga resquícios e consequências desse processo?
A Bahia é uma das cidades ou regiões mais antigas posteriores à presença europeia. As contradições nessa região são prototípicas de todo o Brasil. [Por um lado], é uma contradição muito criativa, e isso é se vê na Bahia na música, na cultura. Mas [essa contradição] é uma oportunidade de [o povo] repensar-se a si próprio. Aqui temos uma América Afro - Brasil, Cuba, Sul dos Estados Unidos são três pontos de forte presença africana - , a hibridez mais complexa da América Latina, em um ponto privilegiado de criatividade cultural. Mas justamente no Brasil, como diz [o sociólogo peruano] Anibal Quijano, se classifica a sociedade não por classes, e sim por cores - é o racismo. E isso segue vigente 100%, porque, embora haja leis para coibir a discriminação, ela ocorre no cotidiano. Quando há uma seleção para qualquer coisa, se diz [a um candidato negro] “não tem boa presença”… Há! Isso é porque não tem cor branca. Em suma, a Bahia é uma parte muito importante do Brasil e da América Latina.
Em momentos de crise econômica, como o que o Brasil vive atualmente, quais são os prejuízos para as camadas mais ricas e para as mais pobres da população?
Falar de uma crise que tem dois anos é falar da crise do último segundo da História. O que aconteceu lá atrás, no Brasil, desde o fim do 19/ com 20? O que significou Vargas, o populismo latinoamericano? [Ali] é o começo de uma proto-revolução industrial. É preciso ver o que havia antes de 30: era uma sociedade muito tradicional, de fazendas, de engenhos, pré-industrial, sem classe operária… e aí começa a surgir a América Latina que conhecemos hoje. [Começa] uma revolução industrial atrasada em um Brasil muito tradicional, que vai atravessando várias etapas até chegar, com o PT, com Lula, a ter, pela primeira vez [após os anos 50/60], pretensões de poder e a afirmar um certo nacionalismo - que, no norte, vão chamar de populismo. Talvez na última etapa tenha faltado valentia de sustentar alguns princípios que haviam sido prometidos. E, ao entregar-se completamente aos ditados do capital financeiro, o partido do governo, que começou sendo de esquerda, se põe em uma contradição muito forte.
É uma crise profunda a que vive o Brasil. Mas é uma crise também temporária, não há porque pensar que seja o fim do mundo ou o fim da história. São os primeiros reflexos de uma certa “entropia”, vamos chamar assim, dessa primavera latinoamericana que começou há pouco - 1999, 2000, com Venezuela, Bolívia, Equador, o Uruguai com um guerrilheiro tupamaro presidente, o Brasil com uma guerrilheira no poder... - e que mudou a fisionomia da América Latina. Estamos enfrentando o desgaste deste primeiro momento, mas é preciso pensar em tudo o que passou. E como filósofo, ético, filósofo da política, digo que, bom, assim como na Venezuela, o que acontece é um processo de burocratização e corrupção das instituições. As instituições são necessárias, mas, inevitavelmente, se desgastam - e se desgastaram. Agora, temos que avaliar esse processo de burocratização, de corrupção. Pensar no que significa a corrupção. Asseguro: não há muita teoria sobre isso. Corrupção é roubar? Sim. Extorquir sexualmente? Sim. Enriquecer? Sim. Mas onde está o fundo político da corrupção? A corrupção é o momento em que, no representante, que está em crise, cresce a sede do poder - e ele se esquece que única sede é a do povo. Mas, para que a única sede seja a do povo, e não a do representante, é preciso criar instituições que ponham em seu lugar a sua representação - coisa que o liberalismo não faz.
É preciso criar instituições de participação. E também fortalecer a subjetividade do político com uma ética. Não [apenas] moralista: é preciso formar a juventude dos partidos para que [o jovem] seja um político honesto, que não tome como algo banal o que é essencial à política. Um político que se corrompe produz desastres objetivamente, não subjetivamente. Vamos pensar em um banco: se o empregado do banco rouba o banco, o banco não anda mais. Então, a honestidade do funcionário do banco é fundamental para o banco. Esse é um tema que deveria ser problematizado nos partidos políticos como escolas de política, e não como maquinaria eleitoral. Os partidos se transformaram em maquinaria eleitoral, então, a corrupção vem desde o começo, no momento em que o político se filia ao partido - porque o que ele busca já está corrompido. Esta não é uma crise qualquer. É uma crise própria de um processo.
Como pensar a existência de heterogeneidade, contradições e conflitos no interior do povo, enquanto categoria política que o senhor costuma usar?
O povo é 'o que sofre'. Essa é a única origem da sabedoria: a dor. Se for até o fim da sua dor, [o povo] vai saber quem lhe propõe as soluções. Entretanto, o povo acredita no que lhe diz a televisão, os jornais, a universidade, a escola… mas vai acreditando menos. O povo vai ter que crescer. E a única escola que o povo tem é o sofrimento. Mas tem também que ter quem o ajude a entender esse sofrimento. Mas o povo não aceita tão rápido. Uma vez, numa conversa com os zapatistas, no Chiapas, alguns se chatearam: ‘Ora, um professor de filosofia para ensinar o povo?’ Eu não ensino ao povo, mas digo ao povo 'Cuidado! Porque também podem te desviar, confundir, e podem acabar votando em quem vai te cortar a cabeça!' Não há solução mágica: os povos têm que ir avançando. A universidade é quem tem que aportar a interpretação do que está acontecendo, e pouco a pouco, o povo vai entendendo. Essa é a função da universidade: esclarecer o povo dos enganos fetichistas que a comunicação lhe lança e permite que as minorias sigam dominando.
*Entrevista realizada por Ricardo Sangiovanni e Guilleramo Navarro (mestrando pelo Pós-Afro/CEAO/UFBA, que colaborou gentilmente com a Assessoria de Comunicação neste evento).