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"Pensar se tornou um problema", afirma Muniz Sodré, na abertura do Congresso da UFBA

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A mídia brasileira fez parecer que o incêndio do Museu Nacional, há pouco mais de um mês, foi uma tragédia porque, afinal, se perdia, para sempre, um patrimônio supostamente caro a toda a população brasileira. De maneira geral, a cobertura midiática aproveitou para reforçar que tudo aconteceu por culpa de certa ineficiência crônica, à qual se supõe estar condenada toda e qualquer forma de gestão estatal do patrimônio público, uma vez que o museu era administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
 
Na contramão desse discurso, o caso do incêndio do Museu Nacional serviu, na verdade, para pôr a descoberto o profundo desprezo que uma parte cada vez maior dos brasileiros atualmente nutre, liderado pelas elites, pela cultura popular "enquanto labor do povo" e pela produção de conhecimento científico realizada nas universidades públicas. Desse desprezo, por sua vez, resulta um perigoso caldo "claro-escuro", de onde emergem "monstros", e, em última instância, toda uma "sociedade incivil". 
 
"O incêndio do Museu Nacional serviu de pretexto para atacar as instituições públicas e defender uma forma privada de gerir o mundo." Foi esse, em síntese, o argumento que o professor da UFRJ e doutor honoris causa pela UFBA Muniz Sodré expôs na conferência de abertura do Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da UFBA 2018, evento em que a Universidade se abre à sociedade para debater a si mesma e expor a produção científica em curso, e que, neste ano, traz como tema "E agora, Brasil? A Universidade e os desafios desses novos tempos". 
 
Trata-se de novos tempos em que, segundo Muniz Sodré, "a morte do velho" não coincide, propriamente, com o "surgimento do novo", dando, assim, espaço ao surgimento de um "claro-escuro" de onde emergem "monstros capazes de pichar banheiros" da universidade com mensagens e símbolos de inspiração neofascista, no âmbito da campanha eleitoral em curso - numa referência ao deplorável episódio registrado na Faculdade de Arquitetura da UFBA, repudiado pelo reitor João Carlos Salles, que antecedera o convidado de honra da noite. Em seu discurso, Muniz Sodré enfatizou o papel da universidade pública na produção de conhecimento, função que não pode ser cumprida por instituições privadas comprometidas com a mera reprodução de saberes instrumentais voltados a suprir as necessidades do mercado.
 
Muniz Sodré tratou de desmistificar o incêndio do Museu enquanto perda, sentida pela população, de algo que lhe era supostamente caro, por duas razões fundamentais. Primeiro, porque os itens que se perderam no Museu Nacional eram, em geral, objetos de importância histórica, arqueológica e antropológica, registros da "cultura enquanto modo de abordagem, de relacionamento com o real" que, portanto, há muito não despertavam interesse real, nem da maioria da população, quanto das elites brasileiras, uma vez que não eram do tipo que se podia "pendurar na parede", nem eram convidativos a posar para uma selfie. 
 
"O Museu Nacional não validava o registro artístico. Ele experimentava e pesquisava", afirmou, observando que, desde o século 19, "as elites nunca deram a mínima para o patrimônio destruído no incêndio do Museu", já que, a rigor, ele "não era midiático, como a carcaça futurista da praça Mauá", em referência crítica ao Museu do Amanhã, projeto que custou R$ 215 milhões, não possui acervo histórico-antropológico e tem recebido grandes fluxos de visitantes. Um índice desse desinteresse, segundo Sodré, é o fato de que "o último presidente a visitar o Museu Nacional havia sido Juscelino Kubitschek", presidente do Brasil entre 1956 e 1961.
 
A segunda razão da falácia apontada por Sodré foi justamente o desprezo que vem se construindo, entre a população brasileira, pela atividade que tornava o Museu Nacional, de fato, um instituição importante: a pesquisa científica de alta relevância e sofisticação realizada pelos pesquisadores ligados à UFRJ, cujo programa de pós-graduação detém a nota máxima da principal avaliação da produção científica brasileira. Nesse sentido, Sodré defendeu as universidades públicas enquanto lugares fundamentais da produção de conhecimento crítico e novas formas de pensamento e sociabilidade, "e não sanduicherias que fabricam diplomas" ou vendem "ensino a distância" - cuja proposta de universalização lhe parece "uma ideia simplesmente ridícula". 
 
"No pensamento [produzido nas universidades], não vejo nada que possa interessar às elites", observou Muniz Sodré, relacionando a construção do desprezo pela cultura e pela pesquisa ao movimento do capitalismo em direção à financeirização. Nesse cenário, pretende-se deslocar a universidade pública de sua função precípua - de "produtora de pensamento crítico" a "reprodutoras de docentes", os quais parecem importar mais enquanto mão-de-obra e menos por seu saber, "visto como inutilidade" - , a gestão pública é desacreditada, e "o público, mesmerizado [hipnotizado] e bestizalizado pela mídia e pelas redes, faz as vezes de povo".
 
É, portanto, desse "público mesmerizado" por uma cultura do entretenimento, que acaba emergindo a principal atribuição do povo em uma democracia, precisamente, a de conferir lastro ao poder que é delegado ao Estado. "Estamos em um momento em que 'pensar' se tornou um problema, mas não [é um problema] o gatilho rápido das redes. Não se pensa, mas se produz efeitos sociais e políticos", avalia Muniz Sodré. "É muito importante gozar e rir. Mas o espírito público corre risco de morrer de tanto rir."